24 de setembro de 2011

A morte de um flagelo

Lembro-me como se fosse anteontem. Contava doze anos e Maria Cecília me parecia muito apetitosa – não sexualmente, presumo – e eu encarava-a e transpirava com nossa troca de olhares. Recordo-me de sua saia curta e escarlate, mas tão curta que cobria, no máximo, um terço de suas pernas. Lembro-me como se fosse anteontem. Sua blusa, então, mostrava suas protuberâncias exageradas e precoces. Seu colo revestido por uma pele macia e agradável.

Olhei e ri e ela riu de volta, com aquela malícia cigana, como a devassa Capitu, que mulher! Seus lábios finos e sua face apimentada eriçavam-me loucamente. Era o intervalo, ou recreio, como diziam os outros, e eu sentado, admirando aquela robustez intrigante. A pureza da menina me encantava e eu continuava a presenciar tamanha nitidez em seu olhar.

Percebi, para minha infelicidade, que Maria não me encarava com toda malícia que pensei. Na verdade, tudo relatado foi criação de uma mente enlouquecida de amor. Um amor contido. Os cinco minutos que fantasiei a reciprocidade da moça, gozei ao imaginar que uma menina, digo, mulher, olhava para mim.

Voltei para a aula, era quinta feira, lembro-me como se fosse anteontem. Meu irmão gêmeo, bi vitelínico, graças à Natureza, chamava atenção com sua espontaneidade infantil. Todas riam e babavam acefalicamente por ele. Irmão estúpido e popular, que cultivava a amizade de todos. Todos falsos!

Seu nome era Victor, e perdão pela indelicadeza, sou Victorio. Victor falava desde os onze meses e eu só comecei a balbuciar depois de um ano da falação dele. Claro que não me recordo, sei pelo prazer contínuo que minha mãe tem em pregar a minha incapacidade perante meu gêmeo diferente.

Todos o acariciavam, beijavam-no, cantavam-lhe músicas para uma instantânea reprodução mal feita. Eu olhava, invejava toda a atenção e carinho. Disso lembro-me como se fosse o dia antes de anteontem. Acho que minha percepção do tempo está um tanto imprecisa.

Receio dizer-lhes, porém, que estou no fim da minha breve existência, com míseros 37 anos desperdiçados pela minha sobrevida fatigada por um irmão egocêntrico e por uma família seletiva. É o Determinismo da vida, a Seleção Natural, afinal, quem foi o precursor do maldito “Darwinismo Social”?

Sinto dizer-lhes que minha não tênue ascensão emocional imergiu tão rápido quanto emergiu um dia. Aquela menina que lhes descrevi morreu semana passada, lembro-me como se tivessem passado algumas horas. Foi tudo rápido e triste.

Casei-me com ela de modo tão fantástico quanto nossas primeiras trocas de olhares, que julgava serem incríveis. Verossímil, entretanto, é a palavra que define nosso relacionamento.

Não sei precisar quando nos falamos ou começamos a buscar e cultivar o gozo um do outro. Foram meses, ou um ano, de sossego e ganância de minha parte. Eu quero, ou queria, ela só para mim. Foi nesse passageiro momento que minha vida fez sentido. Meu rosto, imberbe e pouco flácido, contrastava com sua maturidade facial. Era uma mulher, deusa, uma espartana digna.

Pois bem, ela morreu, de câncer. Sofreu como uma coitada. Mentira, não era coitada. Mulher de fibra, mais homem que eu. Porque, então, sua morte foi necessária? E do mesmo modo que a pergunta surgiu em meu subconsciente a resposta abriu minha mente:
- Você está vivo, isso importa!

Lembrei-me novamente de Victor. Está morto também. Tinha acabado de entrar na faculdade de Direito. Morreu afogado na piscina de uma casa, durante uma festa. Pergunto-me constantemente aonde se escondeu toda sua prodigalidade no momento que, estupidamente, bebeu até a morte? Gostaria de ver o espanto no rosto de minha mãe, mas ela morreu antes dele. Todos morreram, sobrei eu e apenas o meu outro eu. O meu gêmeo idealizado e que foi o meu único amor. Na verdade, meu único amor foi Maria Cecília. Ainda a amo.

Como morreu minha mãe? Não sei bem, desgosto, suponho, por ter um Victorio como sua prole. Nunca segui os passos de Victor, nunca fui alguém como ele, nem na aparência. Meu pai? Não conheci, e ele, provavelmente, amaria e idolatraria Victor muito mais que eu, como todos. Eu fui eu e continuarei assim até.

E morro narrando-lhes as passagens mais importantes da minha vida. Infeliz sigo pensando que a morte será a cura para um dia não lembrar como vivi. Um dia. A única, e repito, a única lembrança que jamais esquecerei, independente da minha percepção temporal, será a de Maria Cecília. Que mulher! E ela se foi com o ar que vai embora dos meus alvéolos. Morro lentamente, flagelado e sufocado em minha angústia solitária.